Durante os últimos anos, o rap nacional vem experimentando um fenômeno marcante de popularização. A multiplicação de novos artistas, a profissionalização do gênero através do surgimento de um mercado de consumo relacionado a cultura urbana, bem como a absorção do gênero pela classe média/alta e por faixas etárias mais jovens, mudou completamente a cara do rap nacional. Questões que antes eram determinantes e prioritárias no gênero, passaram a soar como detalhes: a politização, a intelectualidade, a lírica, o sample… Perderam espaço para uma nova tendência, focada no mercado de consumo e num verniz muito mais Pop.
Se antes o rap assimilava tudo aquilo que causava incomodo na sociedade, e consequentemente sobrevivia em um circuito fechado, hoje o rap desperta de um período onde assimilou conteúdos populares e de fácil aceitação. Baladas românticas, autoafirmação, drogas, luxúria, ostentação, machismo e indiferença social são alguns dos elementos que encontramos em uma porcentagem gigantesca de lançamentos nos últimos anos aqui no Brasil. Artistas que bombaram no mercado, apostaram todas as suas fichas em clipes americanizados, batidas trap e hits grudentos. Por serem, em sua maioria, rapazes brancos e de classe média, tiveram uma aceitação ainda mais fácil dentro do mercado de consumo musical, atingindo um público muito mais amplo e diversificado e ganhando espaço na mídia, sabendo se aproveitar de outros símbolos da cultura juvenil contemporânea, como o skate e a maconha.
Assim, houve claramente um processo de infantilização do público, que caiu de paraquedas no gênero rap, tendo experimentado muito pouco os outros elementos que compõem o hip hop, especialmente a experiência da cultura de rua. Os grupos e MC’s, focados na disputa pelo mercado, esbanjaram personalismos, deixando de lado antigas pautas do movimento hip hop, como as questões raciais e de classe. Não por acaso, experimentamos (com certa vergonha alheia), o Rap ser instrumentalizado por políticos conservadores em suas campanhas eleitorais, utilizando artistas do hip hop como massa de manobra (quem não se lembra daquele grupo de MC’s cariocas que fez música de campanha para o boçal Aécio Neves em 2014?).
Um mercado em expansão, profissionalização através da movimentação da internet, produtores, videomakers, e uma gama de conexões no mainstream, especialmente no eixo Rio/SP foram elementos que criaram a sensação de que o rap não poderia existir ou crescer sem depender dessas premissas. No entanto, no último ano, o que se observou foi um processo de ruptura com essa condição… Artistas de outras regiões lutaram por espaço, consolidando um público também diversificado, sedento por conteúdos de alta complexidade, subjetividade, provocação e principalmente: lirismo.
2016 foi o ano da ascensão dos poetas, dos grandes compositores, do retorno dos negros pra cena, do fomento do rap feminino e da popularização do rap de diversas regiões fora do eixo Rio/SP. Com poucos recursos audiovisuais, pouca grana e muito conteúdo lírico, artistas como Froid, Djonga, Makalister, BK, Raffa Moreira, Diomedes, Baco e outros, ousaram resgatar a composição, a poesia, a quebra dos padrões rítmicos, as metáforas e as figuras de linguagem em geral, que colocaram o rap no patamar mais alto da composição musical complexa.
Os outros artistas, que cederam as premissas do mercado de consumo da música, mantiveram seus lucros, mas perderam um pouco da credibilidade, aparentemente confortáveis em seu limite criativo. A diferença da manutenção de um público infantil, é que criança é assim: uma hora gosta de uma coisa, outra hora não gosta mais. Consequência direta da pouca identificação desse público com todos os outros elementos da cultura hip hop. Parece que estamos presenciando o momento de apogeu e queda dos hitmakers brancos de classe média no rap e dos “sons pra pista”, a consequência disso é a democratização dos conteúdos, dos públicos e dos artistas.
Há uns dois anos atrás, GZA, do Wu-Tang, falava sobre a decadência do lirismo no rap gringo, fenômeno que experimentamos por aqui também, mas como as coisas mudam muito rápido, hoje GZA deve estar feliz podendo ouvir os últimos trabalhos sensacionais de artistas como Mick Jenkins e J. Cole.
Parece que em 2017, podemos esperar um enfrentamento muito forte das tendências de mercado, o retorno a um primitivismo no sentido do “faça você mesmo”, artistas que produzem tudo por conta própria, que são seus próprios beatmakers, videomakers, fotógrafos… E uma conexão muito forte entre os desbravadores dessa tendência (não é a toa a pancada de Cyphers e participações, projetos e união entre os estados).
Também parece ser tendência o crescimento e amadurecimento da mídia do rap, com sites e conteúdos mais complexos sendo produzidos. Aposto todas as minhas fichas de que o próximo grande acontecimento no rap nacional será a consolidação dos artistas do sul, ainda pouco conhecidos nacionalmente, mas que pertencem a uma escola de grandes escritores líricos, que o digam os mestres Zudizilla e Cachola. Pra mim, parece que tudo se resume a uma lacuna vazia, que agora parece estar sendo preenchida. Nesse sentido, o trabalho de portais como o ZonaSuburbana, RND, Bocada Forte, Noticiario Periferico, Rap Nacional, e projetos como RapBox e o Genius entre outros, são fundamentais. Poetas no topo, pretos no topo, minas no topo, 2017 vai ser um prato cheio pras cabeças pensantes e pros amantes da boa composição.