Depois de três anos lançando singles, um dos maiores nomes do movimento trap brasileiro estreia nesta quinta-feira, 10 de setembro, às 21h, com o álbum autoproduzido, com sample de Charlie Brown Jr. Conceitual e, ao mesmo tempo, minimalista: esse é “Máquina do Tempo”.
“Você tá preparado?”, pergunta Matuê antes de apresentar a sua máquina do tempo. O artista nascido em Fortaleza (e criado também em Oakland, na Califórnia) propõe uma viagem pelo tempo e espaço. De dreads roxos, como o personagem central da história conceitual do primeiro álbum da carreira, ele sorri para a câmera da videochamada a cada nova música do disco dele, lançado depois de três anos de singles bem-sucedidos e de assumir a posição de um dos nomes mais importantes do trap brasileiro da atualidade.
Então, aperte o cinto que chegou “Máquina do Tempo”, um lançamento 30PRAUM e Sony Music. O primeiro álbum de Matuê, todo autoproduzido, pode ser digerido de duas formas, ele mesmo explica. Pode ser fracionado, música a música, adicionado às favoritas em playlists e curtir individualmente cada canção, ou ouvindo o álbum na totalidade, do começo ao fim, e embarcar em uma jornada que envolve um mundo digno das melhores ficções científicas de Hollywood e psicotrópicos.
O lançamento do álbum foi marcado por ações de divulgação misteriosas, como uma arte gigantesca pintada em um prédio na Rua da Consolação, na região central de São Paulo, e também artes em stencils pintados pelas ruas.
Cada faixa do álbum ganha um audioclipe assinado pelo artista Stefan Mathez (@toomuchlag), com animações que contam mais sobre a história narrada por Máquina do Tempo e, também, funcionam como metáforas sobre nostalgia, críticas sociais, curtição e temas inéditos como saúde mental que estão espalhadas pelas sete músicas do álbum.
“É o meu primeiro disco, sabe? Tem uma importância, não só por isso, mas também pelo esforço que colocamos para fazer esse álbum acontecer. É minimalista, mas também tem um conceito central. As pessoas escolhem como querem ouvir a Máquina do Tempo”.
Matuê estourou com “Anos Luz”, música que é considerada um marco do trap nacional, lançada em 2017. Atualmente, a faixa já tem 110 milhões de visualizações. Emendou outros singles de sucesso, que entraram em alta rotação no YouTube e também nas playlists das plataformas de streaming. A última música lançada antes do também diretor criativo do selo 30PRAUM “sumir” das redes e se preparar para o novo álbum foi “Kenny G”, que ultrapassou os já impressionantes números de “Anos Luz” e, atualmente, soma 130 milhões de visualizações, além de ter alcançado a quarta posição no Top 200 do Spotify.
“Máquina do Tempo”, o álbum lançado no dia XX de setembro, apresenta o melhor momento criativo de Matuê. Sem pisar no freio, ele avança com velocidade para além das barreiras da música trap como pouco se viu no Brasil e fora. E, ao acrescentar o conceito de viagem no tempo no disco, em uma jornada colorida, alucinógena e, ao mesmo tempo, cyberpunk, ele também apresenta uma narrativa inédita na música nacional.
O primeiro disco de Matuê nasceu de uma canção postada nos stories do Instagram, um trechinho criado sem pretensão. “É uma criação super espontânea”, anima-se o trapper. “Na maioria das vezes, as músicas acontecem assim, chutando o balde”, ele brinca.
“Máquina do Tempo”, a faixa que dá nome ao álbum e também é a última das sete músicas da tracklist, foi criada em um encontro com o também rapper Menestrel. Falavam de experienciar um bloqueio criativo de encontrar a própria essência. Matuê, então, sugeriu: “Escolhe um beat, liga o microfone e fala o que você sentir”. Para exemplificar, o trapper fez isso: ligou o microfone, soltou um beat com um sample de Charlie Brown Jr. (de “Como Tudo Deve Ser”) e começou a colocar ideias para fora. “Falei um monte de besteira nesse som”, ele se diverte.
Na época, postou trechos de 15 segundos na rede social e até hoje é cobrado por essa música. “O que penso é que você não pode julgar a sua criação. Pode ser que seja uma porcaria, pode ser que seja bem legal”, conta Matuê. Quando soltou o hit “Kenny G”, inclusive, ele foi perguntado pela tal “Máquina do Tempo”. “Tentei recriar essa música mil vezes”, ele conta.
A “Máquina do Tempo” que ouvimos no encerramento do álbum homônimo é outra, mais orgânica também, já que é o próprio Matuê quem gravou todos os instrumentos desse sample do clássico do rock brasileiro “Como Tudo Deve Ser”, do Charlie Brown Jr. (sim, ele pira muito em música e se orgulha de “dominar qualquer instrumento que colocar a mão”, como o próprio conta). Logo no play, você sente uma versão do baixo pesadíssimo de Champignon, um dos maiores baixistas da história do rock brasileiro, e o dedilhado na guitarra tão viciante de Marcão. Flertar com o universo musical do CBJr é bastante emocionante para Matuê, que tem uma história afetiva com o vocalista Chorão nas pistas de skate de Fortal, como ele chama a capital Fortaleza.
“Eu vou fazer uma máquina do tempo”, canta Matuê na última música do álbum. E ele, na videochamada, admite: “Não sei de onde eu tirei isso. Veio do momento de criação. Em vez de reproduzir aquela energia, eu criei uma música nova. Foi um processo fod*, que chegou ao fim depois de um ano e meio”.
“Máquina do Tempo”, o disco, também foi criado ao longo desse período. E, por se tratar do primeiro álbum da carreira de Matuê, é intensamente biográfico e pessoal. “É fora da curva do trap”, ele anuncia. Claro, temáticas comuns do trap como sexo, drogas, dinheiro, carros e críticas sociais estão ali, mas a mensagem do trapper nunca se resumiu à isso – basta voltar ao primeiro single, “Anos Luz”, cuja mensagem já apresentava Matuê como uma figura diferente da cena.
Outros momentos pessoais do artista estão em “Máquina do Tempo”, desde a experiência com alucinógenos com toda a equipe de turnê em janeiro de 2020, que ajudou a criar a ideia de “Cogulândia”, música de abertura do álbum, até a música mais sombria, um reggae com levada de trap, “É Sal”, que retrata a violência, da vivência em Fortaleza.
“Para essa música, usei o jeito de falar e de enxergar que representam bem a minha cidade”, ele fala, sobre as expressões usadas no flow sempre preciso de Matuê e, por vezes, cheio de ironia. “Essa é uma música que representa uma certa revolta com a negligência por parte do governo. Fortaleza tem uma separação muito grande entre as classes, etnias, muito preconceito“. Ao mesmo tempo, até quando fala sobre o crime, Matuê não perde a chance de usar o alcance da própria voz para entregar linhas de reflexão. “Digo que a vida do crime não é glamorosa”, ele explica. “Quando esse assunto geralmente é tratado no rap, é feito com glamour, como algo bom. O refrão é para mostrar que não existe nada de bonito nisso”.
Cada uma das canções oferece uma estética particular de Matuê. Depois da pegada vagarosa de “Cogulândia”, ele embarca em uma trip mais vagarosa e nostálgica com “Antes“, canção com refrão que vai grudar na cabeça. Aliás, sinta a transição entre “Antes” e “Gorilla Roxo” e tente não se arrepiar com essa transformação de andamento e beat. “São pequenas texturas do som que ajudam a criar uma atmosfera”, diz Matuê, orgulhoso.
Com “Vem Chapar”, o disco chega ao ponto mais good vibes antes da queda para os temas mais soturnos apresentados em “Máquina do Tempo”. “’Vem Chapar’ é meu hino do ganja. Sempre falo disso durante os meus discos, mas não tinha uma música só para isso. No meu disco, eu tinha que incluir uma música assim”. Na música, ele aproveita para deixar mais evidente o gosto pela estética da música indie e música alternativa.
Quando chega “777-666”, apresenta-se o momento de virada do álbum. O lado A, mais feliz, fica para trás e tem início a segunda metade do disco, mais densa. Isso, é claro, foi proposital também. Pela primeira vez em músicas, Matuê fala sobre a dualidade sentida durante o processo de criação. “Tem dias que a criticidade chega a um nível absurdo. Sinto como se o meu trabalho não prestasse. No dia em que fiz a música, estava com esse sentimento. Geralmente, quando estou assim, não gravo música, procuro resolver essa energia que está assim, mas dessa vez pensei em fazer algo diferente”.
Penúltima faixa do álbum, “É Sal”, emenda em 777-666 com esse trap-reggae com alerta sobre a violência e o crime, e antecede “Máquina do Tempo”.
Como bem disse Matuê, é possível degustar esse disco aos poucos, faixa a faixa, ou inteiro, para entrar na narrativa oferecida por ali. Ambas funcionam muito bem, diga-se de passagem.
Se você quiser realmente entender o conceito, a primeira coisa que deveria saber é que a música “Máquina do Tempo”, apesar de ser a sétima e última na tracklist, é aquela que inicia a história contada no álbum. Ou seja, quando ouvimos a última música do disco com ele no repeat, nós, os ouvintes, “voltamos no tempo”, voltamos para a primeira faixa. E assim começa a jornada desse personagem.
Isso tem, obviamente, muitos simbolismos. Também representa o Matuê querendo voltar à versão de “Máquina do Tempo” que postou nos stories, enquanto cria algo novo, do que foi feito no passado. Faz referência à memória com Chorão e Charlie Brown Jr., mas em vez de usar o trecho gravado pela banda, é o próprio artista quem gravou os instrumentos. Passado, presente e futuro se misturam no álbum de estreia de Matuê. Da última música, o personagem se transporta para a primeira delas para tentar mudar o rumo da humanidade destruída em uma sociedade pós-apocalíptica. Dar aqui detalhes da narrativa além disso pode ser considerado um spoiler, então é melhor parar por aqui.