Brasil, anos 1980, época de transformações. O rock consagrava grupos como Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Titãs, Plebe Rude e Engenheiros do Hawaí. Gravadoras abriram selos para dar conta (ou controlar) o que era feito pelos garotos e garotas. As rádios pop tocavam Tim Maia, Marina, Lulu Santos, Kleyton & Kledir, entre vários artistas da música brasileira e internacional. Jovens ingressavam nas ideias e na sonoridade do movimento punk, alguns engajados, outros por pura diversão. O samba, desde a década de 70, tinha seu espaço nos bailes das equipes, nos fundos dos quintais, nos bares, mas ainda não era executado nas emissoras, apesar de ser romantizado pela elite.
A rapaziada que ia da periferia para o centro e do centro para a periferia, num vai e vem que definiu a dinâmica econômica e cultural dos jovens do ano de 1988, percebia e fazia parte das mudanças das ruas, tanto na região central, onde trabalhavam e consumiam, quanto nas partes mais distantes da cidade, onde vivenciavam a construção desordenada do município e, porque não, do Estado de São Paulo: falta de habitação, transporte precário, violência policial, ausência de saneamento, educação falha e outros problemas que duram até hoje.
Em 1984, o “break dance” invadiu o centro de Sampa e outras capitais, os canais de TV e as escolas públicas. Os timbres, vindos de baterias eletrônicas e samplers, foram, aos poucos, assimilados por uma geração que se desenvolvia ouvindo o som feito após a influência do soul, do samba, do funk e do rock. O rap que rolava nos bailes, tirando algumas exceções, não era o mesmo rap que embalava as ruas da região do centro, no ano de 1988. O público que curtia as festas organizadas pelas equipes de baile, apesar de ter origem semelhante, não interpretava o rap da mesma maneira que os jovens das ruas.
Neste contexto, nascem as consideradas duas primeiras coletâneas de rap: Hip Hop Cultura de Rua e O Som das Ruas. A primeira ligada ao selo Eldorado e com um time de produtores da cena rock. A outra produzida pela Chic Show, uma das maiores equipes de baile do Brasil. Fatos suficientes para provocar uma das primeiras polêmicas do rap brasileiro. Artistas das duas compilações afirmavam que eram originais e que representavam o verdadeiro rap e as ruas. Na revista Bizz, o time da Cultura de Rua falou que os DJs e MCs da outra coletânea ainda estavam na era das cópias e das versões do rap dos EUA. Nos dias 6 e 23 de dezembro de 1988, o Jornal Folha de S.Paulo registrou declarações dos dois lados:
“Não há nada em comum entre o nosso disco e o Cultura de Rua. Ele foi produzido por pessoas que lidam com música genuinamente black”, afirmou Dom Billy, vocalista do De Repent, que integra o disco O Som da Ruas. Segundo Jornal Folha de S.Paulo, Billy era ex-Funk e Cia, grupo de break que circulou pelo centro de São Paulo.
“Eles (O Som das Ruas) já superaram as ruas. Estão no estágio de artistas e não perdem para os grupos americanos. Tudo é uma questão de tempo”, comentou Luiz Alberto, o Luizão, dono da equipe Chic Show.
Na época, afirmou Luizão: “O Som das Ruas é mais fiel ao público negro do que outros caras por aí (Cultura de Rua), que ainda estão no estágio de rua, que é de 15 anos atrás”. Para o executivo da Chic Show, Thaide e DJ Hum eram os únicos artistas que deveriam estar no disco da equipe. Os MCs do LP Cultura de Rua, sentenciaram: “O pessoal do Som das Ruas está equivocado. Esse nome é falso. Nós é que somos das ruas.”
O hip hop e o rap davam seus primeiros passos em terras brasileiras, com artistas e produtores brasileiros que deixavam as marcas de suas origens socioculturais, em cada rima, em cada instrumental. Quem eram, de onde vinham, fatos que determinaram as formas e estilos do nosso rap. Grande parte dos jovens da periferia não conheciam tais polêmicas, apenas curtiam o som artistas do canto falado que tinham bases dançantes e falavam português. Sim, agora eles também podiam fazer rap.
“O Som das Ruas”
‘Rap da abolição’ – Os Metralhas
‘Sem querer’ – Catito
‘Melô da lagartixa’ – Ndee Rap
‘Melô da Chic’ – Mister
‘Rap love’ – De Repent
‘Rap de arromba’ – Ndee Rap
‘Foi bom’ – Sampa Crew
‘Pega ladrão’ – De Repent
‘Check my mix’ – DJ Cuca
‘Rap no francês’ – Dee Mau
“Hip-Hop Cultura de Rua”
‘Corpo Fechado’ – Thaide & DJ Hum
‘Código 13’ – Código 13
‘Centro da Cidade’ – MC Jack
‘O Credo’ – O Credo
‘Deus a Visão Cega’ – O Credo
‘Homens da Lei’ – Thaide & DJ Hum
Texto publicado originalmente em fevereiro de 2016, no Bocada Forte.
ERRAMOS
Assim como o leitor Renilson Nascimento – que fez parte do grupo Electro Rock – alertou em nossa página no Facebook, antes do lançamento das obras citadas nesta matéria, a equipe Kaskatas lançou, em 1987, a coletânea A Ousadia do Rap.
“Equipe Kaskatas Apresenta A Ousadia do Rap”
De Repent, “Hey DJ”
Mister Théo, “Cerveja”
Eletro Rock, “Musicar”
B. Force, “Baby”
Zy DJ e DJ Cuca, “Pick up the mix”
Kaka House, “Virada à paulista”
Zy DJ & DJ Cuca, “New time”