Passar por um especial mês das mulheres e não falar de Lauryn Hill é quase uma heresia.
A cantora, atriz e produtora dispensa apresentações, mas sempre bom reforçar o quanto a figura de Lauryn Hill é significativa no cenário hip hop.
A rapper integrava o lendário trio “Fugees”, e após sair por desavenças constantes com o grupo, lançou o disco de estreia de sua carreia solo em 1998 o “The Miseducation of Lauryn Hill”.
Para se ter uma noção da importância desse disco, “Miseducation” é considerado um daqueles álbuns essenciais dos anos 90. Indicado a dez Grammys, ganhador de cinco e considerado pela revista Rolling Stones como um dos 500 melhores discos de todos os tempos, o álbum além de tudo vendeu mais de 18 milhões de cópias pelo mundo.
Com um disco tão aclamado, Lauryn Hill não só registrou uma forte impressão artística como o fez pela voz feminina, e isso não teve como passar batido, ainda mais num meio tão ideologicamente masculino como o rap.
“The Miseducation of Lauryn Hill” traz muitas referências musicais como o reggae, o R&B, o gospel, muitas referências pessoais da cantora em suas letras e passados quase 20 anos de seu lançamento é um disco que se mantém atual.
Apesar de um vasto caminho a ser percorrido, largos passos foram dados no que se refere à igualdade no rap. Se hoje muitas mulheres têm espaço e força neste mercado, muitos obstáculos precisaram ser quebrados no passado, e em livre tradução, a deseducação de Lauryn Hill certamente garantiu algumas das portas abertas de hoje.
A música “Doo -Wop”, um dos hits do disco, foi escrito e produzido pela cantora, e inaugurou a categoria de video clipe do ano de 1999 na premiação da MTV Video Music Awards.
Em trechos da letra como “…Mostrando a bunda porque acha que é tendência”, Lauryn faz uma crítica à sexualização a qual a mulher é colocada. No entanto, hoje temos uma reflexão mais abrangente com relação a isso. Em tempos de superexposição nas redes sociais, muita nudez feminina é veiculada e em alguns casos, poucos na verdade, a ideia que se pretende passar é a respeito da liberdade da mulher sobre seu corpo, conceito fortemente atrelado à expressão feminista “meu corpo, minhas regras”. Ou seja, hoje em dia “mostrar a bunda” ate´por uma questão de sororidade, é muito mais apoiado do que recriminado entre as mulheres, ainda que em pequena escala.
Também em “Olha só como você está, com perucas loiras igual uma europeia” – (fora a parte da peruca) hoje sabemos que beleza negra é mais diversificada, podendo ser inclusive mais explorada, e que consciência negra não se limita à cor do cabelo.
As letras, que são o grande trunfo do rap – ou que pelo menos deveriam ser – nos traz vários elementos de análise de uma época e análise cultural. Nos alegres beats de “Doo-Wop”, a cantora manda um papo bem reto sobre comportamento, sobre ostentação de valores materiais e sobre as relações homem x mulher baseadas em sexismo e machismo, coisas que infelizmente ainda não mudaram.
Segue abaixo tradução da letra de “Doo-Wop (That Thing)”
“Faz três semanas que você vem procurando aquele cara, aquele que transou contigo e nunca mais te ligou. Lembra quando ele te contou que só queria saber de ostentação? Você agiu como se não ouvisse e deu a ele uma chance. Pra começar, onde você pensa que você vai chegar fingindo que não estava deprimida ligando pra ele novamente? Além disso, você cedeu tão fácil que nem sequer o enganou. Se você o chamar novamente, você vai se foder de novo. Falando da boca pra fora que é cristã, é como se um muçulmano consumisse gin. Ora, esse foi o pecado de Jezebel! Com quem você vai contar quando as repercussões começarem? Mostrando a bunda porque acha que é tendência. Minha amiga, deixa eu explicar algo pra você de novo, você sabe que eu só digo isso porque eu sou muito genuína. Não seja uma rocha dura quando você na verdade é uma pedra preciosa. Meu amor, respeito é o mínimo que ele te deve, esses caras humilham pra caralho e você continua defendendo ele. Se liga, a Lauryn é apenas humana, não pense que eu já não passei pela mesma coisa. Mude de mentalidade, como as milhões na marcha das mulheres que houve em Philly Penn. É uma estupidez ver meninas vendendo a alma porque tá na moda. Olha só como você está, com perucas loiras igual uma europeia. Unhas postiças feitas por coreanos. Sai dessa! Caras é melhor vocês ficarem ligados, algumas garotas só estão atrás daquilo.
O segundo verso é dedicado aos homens. Mais preocupados com seus carros e tênis de marca do que com suas mulheres. Ele e seus amigos chegam no clube igual marginais. Não se importando quem eles ofendem, fazendo merda. Não vamos fingir, aquele cara que carrega uma pistola na cintura é um homem de cristal, ainda vive com a mamãe. Aquele homem lindo que diz que é o machão precisa ir cuidar dos seus três ou quatro filhos. E enfrenta um processo judicial porque atrasou com a pensão. Dinheiro tomado, coração partido. Agora você ainda se pergunta porque mulheres odeiam homens: o homem covarde, o letárgico, o homem valentão, o que pratica violência doméstica! Rápido apenas para disparar o sêmen, parem de agir como garotos e sejam homens! Como você vai vencer quando não está bem consigo mesmo? Garotas é melhor vocês ficarem ligadas, alguns caras só estão atrás daquilo”.
Confira, abaixo o álbum “The Miseducation of Lauryn Hill” na íntegra: