Com voz marcante e flow único, Flávio XL faz de seu rap ponte para interligar desejos, lutas e missões. Integrante dos coletivos Muntu e Lutarmada, junção de MCs e beatmakers que fazem sons ligados ao cotidiano periférico com olhar político, Flávio segue por vias e áreas pouco conhecidas no hip hop brasileiro. Ativista que também faz autocrítica, XL tem a poesia do rap como uma constante em seu cotidiano. “A vida é muita coisa, é tentar parar, olhar e escrever até também para expurgar”, afirma o rapper. Conheça mais um pouco sobre Flávio XL na entrevista abaixo.
ZS: Chacinas praticadas por policiais, racismo descarado e velado, pessoas que apoiam ações violentas sobre o corpo de negros e pobres. O que o rap tem a ver com isso? O que seu rap tem a ver com isso?
Flávio XL: Meu rap tem a ver com isso na medida de eu escrever aquilo que vejo e vivo. Sou suburbano da zona norte do Rio, cresci na Penha. Nasci na Baixada Fluminense, Caxias, onde mora mais ou menos metade da minha família. Periferia, duas realidades diferentes, sempre tive pais separados, sempre tive duas possibilidades de enxergar como se vive, no que se acredita e os perrengues reais. Um grande amigo meu me disse que é na base da pirâmide que se encontram as coisas mais brutas, as maiores construções e bizarrices. Tem muita coisa boa, lógico, mas periferia é a parte esquecida do todo, o gigante e invisível, onde tem o mais bolado, o descartável, onde se ostenta, onde se mata. Tive sorte, tive quem olhou por mim e sobrevivi, tenho 37 anos. Meu rap vai cantar o arraste dessa vida, dos meus, é por aí. O rap hoje tomou proporções inimagináveis pra gente tem mais tempo no bagulho, pra mim o rap tinha que ser a CNN preta e periférica, como diz o Chuck D. Sem juízo de valor, cada um tem uma realidade, mas sendo clichê máximo, ainda acredito que o rap seja compromisso. Não falar merda seria o mínimo, mas esse assunto não se esgota fácil assim.
ZS: Novos discursos no rap movimentam a cena, mas, em relação ao cenário de desigualdade social, o que estes mesmos discursos paralisam, reproduzem e negam a reflexão?
Flávio XL: Pra mim, nós paralisamos e negamos a reflexão quando a gente se nega a falar do machismo na nossa cultura, por exemplo. Uma porrada dos nossos viu alguma mulher da família apanhar, caralho! Muitas vezes nossa própria mãe, e aí quando conseguimos ter uma caixa de ferramenta mental que nos permita escrever sobre, não tocamos no assunto? Cada um faz som na sua vibe, mas acho que seria interessante cada MC refletir sobre, sabe? O Neto, do Síntese, disse numa entrevista que a caminhada é pessoal, concordo também com isso. A letra tende a ser o íntimo do MC, aquilo que toca sua sensibilidade. Ninguém aqui é puritano, fera, mas sigo na lógica de colocar no verso coisas interessantes para saírem de mim e coisas que aprendo na militância. O rap também faz parte da minha militância.
ZS: Quais experiências você recorda e valoriza quando você diz em seu rap que agradece ao Coletivo Lutarmada
Flávio XL: Eu sou integrante do Lutarmada desde 2008 (saí e voltei ) e é um coletivo combativo no qual aprendo muito. Hoje, do rap, somos eu, Gas-PA – relíquia do rap RJ – e o Extremo Leste Cartel. Integro hoje também o Coletivo Muntu, com meus manos Fabio Emecê, B. M.K.Lé e Dudu Foxx fazendo os beats (que é um moleque maravilhoso lá de Cabo Frio). E sem esquecer também da banca do Adversos, com meus manos aqui do Manguinhos e Jacaré: Magoo Punx, Bigorna Surtado, Leonício e ainda com o Fabio Emece e o Dudu Foxx. Aprendo com todas essas trocas porque são MCs de trincheira mesmo. Todo mundo quer ganhar sua grana, mas o que nos move são as intervenções junto aos nossos, do jeito que der.
ZS: Seu rap é feito do ponto de vista periférico, negro e que mescla ideias sobre família, relações afetivas e valores. O que inspira sua poesia?
Flávio XL: Tenho 37 anos, como disse. Eu olho os meus há muito tempo e quanto mais eu absorvo do que leio, viajo e vivencio, sempre vejo que cabe uma reflexão. Faço rap de adulto, com os perrengues nossos de pagar as contas, criar uma filha, o entorno de onde eu tô e sou. A vida é muita coisa, é tentar parar, olhar e escrever até também para expurgar.
ZS: Sua filha é personagem em sua rimas. Tem medo do crescimento e sobrevivência dela num país racista e machista como o nosso?
Flávio XL: Tenho medo pra caralho! O mundo tá doido, doído. Tento conduzir a criação de forma a essa alma ter uma caixa de ferramentas que permita entender, se defender e sorrir, conseguir viver as coisas boas que a existência dá. Minha filha é fonte de inspiração constante, essa fase inicial é de intensas mudanças, quanto mais cresce mais maneiro e complexo é o desenrolo. Inspira e transpira, porque é um combo de coisas operacionais e amor, muito doido mesmo.
ZS: O que anda ouvindo e lendo? Poderia indicar livros, blogs e sons?
Flávio XL: Minha rotina de trabalho tá tão corrida que tenho procurado pouca coisa, confesso. Mas tenho ouvido muito o som do vale, que gosto muito. Síntese eu amarro demais. Ouço muito o meu bando citado lá em cima, que tá sempre nos corres e produzindo naquela dificuldade do som independente, assim como o Mano Teko, Pingo, Lasca (meus manos relíquia do funk antigo), Átomo, Antiéticos, Nyl MC, Us Neguin que não se cala, sempre acho bom indicar os que fazem a cena independente acontecer. Som bom e discurso contundente. Blog eu não tenho acessado tanto nos tempos últimos, mas, além do Zona Suburbana ,eu sempre dou uma chegada no Polifonia Periférica.
ZS: É difícil unir estética e conteúdo quando se faz rap político? Rimar sobre o nada é melhor em termos de flow?
Flávio XL: Acho que não é nem a questão da estética só, mas também do que vai soar mais vendável. Acho que a vantagem da internet e o barateamento do custo pra fazer som em casa vão permitir discursos e estéticas múltiplas, quero mais é isso. Mas não me sinto na propriedade de falar de mercado porque não sigo essa lógica, nunca assinei contrato. Quero fazer rap sujo e bom. Na rua, a gente firma os contatos e segue a vida. Lógico que ficaria feliz se uma galera gostasse e baixasse, mas é a rua que diz, e gosto das trocas quando faço alguma intervenção, a identificação com aquela alma ali é a que vale. Isso é o real.
ZS: Até que ponto o fenômeno DISS, que é parte do hip hop, deve ser levado a sério? Consegue se imaginar mandando um som pra outro artista?
Flávio XL: Respeito quem faz diss e achei a Sulicídio um serviço, inclusive. Mas não sou dessa não, e também nunca tive o gosto de ouvir as tretas. Mas pra mim Sulicídio é diferente, ela chama a atenção pra uma polarização RJ/SP , acho que uma galera de outras quebradas tem mais dificuldade sim pra ocupar os espaços. Quem diz o inverso tá de má fé em entender o papo dos caras. Também vejo excessos nesse processo, nessa forma, ao meu modo de ver. Mas acho que os caras já se resolveram, passaram a visão, multiplicaram suas visualizações, gente que não tava na treta se meteu e também ganhou visualização… Deve estar todo mundo feliz! (risos)
Foto: NimbusMOB