Gabriel, O Pensador ficou alguns instantes em silêncio. Pensando, obviamente. A pergunta era a filosófica e prática, ao mesmo tempo: “Quem era o Gabriel, o Pensador que gravou o álbum “Seja Você Mesmo (Mas Não Seja Sempre o Mesmo)”, lançado em 2001, e como aquele Gabriel se comparava àquele do presente?”.
E a resposta do artista é igualmente complexa e existencialista. Gabriel contino afirma que chegou aos 47 anos mantendo a essência de duas décadas atrás: a vontade de não se repetir.
Sem perceber, Gabriel, O Pensador respondeu com a essência do título do álbum que comemora 20 anos neste 2021, responsável por transformar o rapper em um dos grandes nomes da música brasileira do início do século.
E o tempo nos permite perceber como o roqueiro “Seja Você Mesmo (Mas Não Seja Sempre o Mesmo)”, lançado pela Sony Music, mudou status do Pensador, de rapper de língua afiada que lutava contra o establishment à figura que com voz e alcance para combater o conformismo e promover um pensamento crítico. Tudo isso vertia em cada um dos versos pulsantes do quinto disco do artista.
“Sempre quis propor um pensamento mais crítico e contra a alienação. Isso desde ‘Retrato de Um Playboy’”, diz Gabriel, o Pensador. “Ainda sou esse cara que tenta sacudir um pouco o ouvinte para ele se ligar em certas coisas. Aliás, ‘Se Liga Aí’ é o título da primeira música do álbum e não é àtoa”.
Ouvir “Se Liga Aí”, a primeira do álbum, inicia a jornada pelo discurso de Gabriel, O Pensador no álbum que parecia vir do futuro – ou seja, do nosso presente. “Deixa a mina ter mulher / Deixa ela viver em pé / Cada um sabe o que quer”, rima Pensador, por exemplo. Da defesa da causa LGBTQIA+ ao combate ao negacionismo (“Liberdade negativa é negar a verdade”, um verso de “Se Liga Aí”), o Pensador de 2001 é tão pertinente quando o de 2021.
Para provar a atualidade da obra de Gabriel, o Pensador – e celebrar as duas décadas do álbum –, a emblemática música “Pega Ladrão”, que fazia tanto sentido antes quanto agora, ganha um lyric vídeo inédito produzido por B+CA/filmes, no canal do artista no Youtube. O vídeo faz referência à foto de Gabriel jovem que estampou a capa do disco de 2001 e assusta pela atualidade das rimas.
“É uma música que possui um questionamento importante até hoje. O papel do eleitor é cobrar resultado de quem votamos. Há anos surgiram esses currais eleitorais pelo Brasil que aceitam qualquer absurdo, esses fãs de políticos que passa pano para qualquer escândalo que eles participam. Faz muito sentido essa música hoje também.”
Inconformismo permeia o álbum aniversariante. Não por acaso três das 11 canções têm perguntas como título. “Tem Alguém Aí?” aborda a dependência química e de álcool no nervo da questão, enquanto “É pra rir ou pra chorar?”, debochada, ironiza a histórica desigualdade social brasileira.
“Até Quando?”, um dos maiores hits do álbum, se tornou uma espécie de hino daquela época. A cada porrada que o brasileiro levava, a canção de Gabriel, o Pensador fazia mais sentido.
Celebrando 20 anos, “Seja Você Mesmo (Mas Não Seja Sempre o Mesmo)” tem as produções dos mestres Liminha, Itaal Shur e Chico Neves, além das participações de Digão (Raimundos) e Lenine em “Tem Alguém Aí?” e “Brasa”, respectivamente.
Foi Liminha quem ajudou a injetar as distorções e as guitarras que marcam a sonoridade do álbum. Já o norte-americano Itaal ajudou Gabriel a encontrar uma forma de compor mais livre e dar mais espaço para o instrumental de suas músicas, como visto na suingada “Masturbação Mental”.
Como ele mesmo diz no diálogo que faz a introdução de “Masturbação Mental”: “Alô, ‘cê tá mudando as suas músicas?”, diz a pergunta. E Gabriel, o Pensador responde: “Não, eu tô musicando as minhas mudanças”.
Ouvir o álbum é uma experiência de viagem no tempo, mas curiosamente nenhuma faixa parece envelhecer um dia sequer. Tem sido assim com Gabriel, o Pensador desde o surgimento em 1992. Quando o Brasil estava abalado com o processo de impeachment do então presidente Fernando Collor, o rapper estreou com a música “Tô Feliz (Matei o Presidente)”. Em 2021, em mais um ano de reboliço político, o imparável Gabriel soltou “Nossa Mente”, uma parceria com o duo Chemical Surf, também carregada de críticas políticas.
Se o rap é um gênero gigantesco no Brasil neste século, isso se deve à sequência alucinante de álbuns lançados pelo Gabriel, o Pensador. A sequência de “Gabriel o Pensador” (1993), “Ainda É só o Começo” (1995), “Quebra-Cabeça” (1997) e “Nádegas a Declarar” (1999) são retratos dos conturbados anos 90.
A partir do pesado “Seja Você Mesmo (Mas Não Seja Sempre o Mesmo)”, Gabriel extrapolou a música para se realmente o “Pensador” do seu alter-ego. Enquanto o Brasil precisar de mudança, Gabriel estará lá pedindo para que cada um de nós abra os olhos. E, no caminho, estará mudando a si próprio também.