Nasci de novo quando conheci o rap nacional. Não passei por apenas uma transformação, outra vida me foi dada. Saí do ostracismo, do anonimato total e conheci outro lado. Não tinha política nenhuma, a gente não queria ser nada, queria só cantar, se divertir e arranjar uma namoradinha. E o lance de querer cantar já dá uma vida nova, uma direção; você sair de uma porta de bar às 14h e ir para casa escrever uma letra. Na quebrada era isso, eu ficava no bar, com os caras, não tinha muita escolha. Qualquer paixão me divertia.
Essa visão politizada veio depois, até considerando nossa idade. Eu mesmo tinha 18 anos. A gente conheceu uma pessoa logo no começo que fez a diferença: Milton Sales. Ele tinha toda a bagagem política de outras bandas. E ainda havia todo aquele momento político começando…Final de ditadura, Diretas Já, democracia. Estes caras eram muito apaixonados, e nós éramos adolescentes. Eu tinha noção zero de política.
O Milton falava: “Vocês são bons, vocês poderiam usar este ritmo, este talento para orientar as pessoas. Tipo o Bob Marley na Jamaica…”. E naquele momento éramos os caras para conduzir as ideias dos mais velhos, que não tinham acesso à molecada. Tudo era muito novo e começou a fazer parte do que a gente fazia. Milhões de portas se abrindo para um cara que sempre teve todas as portas fechadas.
Na sequência, vinha o Public Enemy. Foi o mesmo que ver o surgimento do Pelé para o moleque que jogava futebol. E tudo aquilo que o Miltão falava, os caras do movimento falavam, e eu não sabia fazer, os caras do Public Enemy já faziam bem demais. Foi o nocaute. Isso tudo antes de existir os Racionais, foram dois anos muito longos. Nesta fase tive muita chance de morrer, de não ter me tornado nada. Eu cantava, mas nada com compromisso. Ganhei concursos, tinha talento para ritmo, era sambista, sou ritmista, e era tudo muito natural, eu só não tinha boas ideias, não era um letrista, era um “cabeça de bagre”.
A gente se divertia, era uma coisa que a gente queria fazer. Eu era um cara confuso, liderando um movimento sem saber, com 20 anos. A ficha caiu agora aos 40 anos, e percebo que nada é perfeito. Estamos no planeta Terra, e não existe felicidade plena.
Acredito que qualquer coisa feita por obrigação flerta com ditadura, com imposições, com o conservadorismo, flerta com cadeia e prisão. Liberdade é liberdade, faz se quiser, se sentir. Um rapper político com más intenções pode ser tão ruim quanto ou pior do que um político de carreira. Você saber que tem domínio sobre as pessoas e usar aquilo é muito perigoso. Hoje minha música está mais livre, eocompromisso está na minha alma. Não preciso colocar no outdoor, fazer panfletagem, nem fazer a mente de ninguém. A internet taí, a informação taí, dá para buscar.
Eu não mudo, mas não exijo. Faço da mesma forma que fazia, com muito amor, muito respeito, ousadia e alegria. O rap é linguagem universal. Se quiser entender, vai ter que conviver, eu não traduzo. Não sou perfeito, não quero ser e já descobri que estou longe disso. Mas não fiz nada que meu coração não quisesse que eu fizesse.
O rap e o hip hop não fizeram nada sozinhos. A transformação foi visível. Orgulho próprio, forma de encarar, forma de se vestir, forma de abordar o outro. Em cada fase a gente ocupou um espaço que não ocupava. Foi muito importante, mas vestir a capa de super-herói realmente não nos cabe, porque existem outros anônimos que não ostentam nada, que não vão para a capa do disco e que não são reconhecidos à altura.
Por: Mano Brown
Texto publicado originalmente no livro Hip Hop Brasil, editado por Nina Fideles, com pesquisa iconográfica de DJ Cortecertu (Jair dos Santos) para a Revista Caros Amigos.
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