Em fevereiro de 2021, Karol Conká era eliminada do “Big Brother Brasil” com uma rejeição recorde. Fora do programa, encontrou o julgamento implacável, o ódio e a agressividade de milhões de pessoas por sua conduta no jogo. O caminho que encontrou para enfrentar tudo — seus próprios demônios, os demônios de seus haters — foi o mesmo ao qual recorre desde menina: a música. Dois meses depois da eliminação, em abril, entrou em estúdio com o produtor Rafa Dias (RDD, do ÀTTOOXXÁ) e preparou as canções que agora aparecem reunidas em seu quarto álbum, “Urucum” (Sony Music).
— Naquele momento o que eu tinha? A minha minha música, a minha verdade — lembra a rapper. — Precisava entender porque eu me coloquei naquela situação e o que precisava para sair dela. Mergulhei na verdade. Era muita dor, muita angústia, porque eu cheguei a acreditar no que a mídia e as redes sociais diziam de mim. Mas essas canções, assim como a terapia, me trouxeram pro real, pro que eu sou. O álbum reflete esse recolhimento, esse processo de cura. Consegui fazer as pazes com a vulnerabilidade. Porque cresci pensando: “Sou mulher preta, não posso ser vulnerável”.
Ao longo das 11 faixas de “Urucum”, Karol expõe o que viu ao olhar para dentro de si — mas também para dentro das engrenagens da máquina de ódio que se ergueu fora dela. Sem rancor, sem autocomiseração, sem vingança. No lugar desses sentimentos menores, a potência afirmativa de quem se sabe viva — potência que vibra nos versos papo reto e nos beats de calor baiano de RDD.
Tudo isso fica evidente já nos primeiros segundos do disco, com o toque de berimbau sintetizado que abre o caminho para “Fuzuê” e seus versos anunciando a chegada firme e incendiária: “Já vai começar o fuzuê/ Então eu vou deixar inflamar”. Noutro momento da canção, ela desafia: “Ei, cê fala com quem?/ Tem medo de que?”. A temperatura aumenta em torno do berimbau metalizado, na combustão da eletrônica de gueto, Áfricas e Brasis em suas esquinas do século XXI — som de preto, enfim.
— Minha avó era baiana, sempre me senti conectada com a Bahia. Há muito tempo tinha vontade de trabalhar com um produtor baiano, e especialmente com o Rafa — conta Karol. — A gente já conhecia o trabalho um do outro, a afinidade foi imediata. Muitas músicas eu fiz a letra na hora, improvisando sobre o que ele me mostrava.
“Se sai” brinca com a baianidade da expressão (algo como “vá embora”) pra poder falar sério sobre a crueldade leviana de quem julga. Sobre atabaques sintetizados, Karol canta, voz de rua: “Quem nunca erra/ Sempre tá por cima/ E quem tá por cima/ Finge que não erra”. O álbum está disponível nas plataformas digitais.
Da voz de rua pra voz da consciência, Karol explora outras nuances de seu canto em “Mal nenhum”, faixa seguinte — o álbum todo, aliás, amplia as possibilidades vocais da cantora, que a cada canção parece investigar um novo terreno. “Mal nenhum” trata do autoconhecimento pra entender o que é sua carga e o que não: “Não é sobre mim/ Toda essa amargurara aê”. Novamente, ela se afirma (“Por onde eu ando/ Batucada bate até de manhã”) e desafia (“Por onde eu ando/ Eu nunca te vi lá”).
“Cê num pode”, sobre triângulo e tambores tensos, é ainda mais contundente na marra (“Essa já é o lado Mamacita”, brinca Karol). Resposta dedo-na-cara ao cancelamento, em meio a versos como “Eu vou botar pressão” e “Sou foda, pode admitir”, Karol crava: “Comigo cê num pode, não”.
Se “Cê num pode” era recado de beat nervoso aos haters, “Calma” é conversa da Karol tranquila pós-BBB com a Karol 220 volts mostrada no programa. “Essa traz o lado Karoline, zen, dos cristais”, explica. Nos versos, ela imagina um cenário tropical que se reflete na base de RDD: “Pé na terra um banho de rio/ De manhã suco de cupuaçu/ Olhando o céu azul/ Sinto o vento soprando/ Secando o corpo nu”. “Eu tô de boa”, ela chega a cantar.
Acordeon arrocha e Daft Punk se encontram em “Vejo bem”, canção sobre saber olhar suas experiências e crescer a partir delas. Já “Sossego”, que põe tamborzão de boca pra conversar com um dedilhado grave de violão, combina melancolia e assertividade de quem quer seguir em frente. A letra cruza existencialismo e ostentação (“Empilhando meu dinheiro/ Viajando o mundo inteiro”). Karol a classifica, de onda, como um “emo-trap-funk”.
“Slow” é o respiro de sensualidade de “Urucum” — respiro grave, cheio de ar, meio suspiro meio gemido. “Música de pegação”, como Karol define a canção que rima “Ouvindo um Frank Ocean” com “Roupas largadas no chão”. “Por inteira” mantém o clima, mas agora mais romance. “Eu tô por inteira/ A semana inteira”, diz a letra.
Num disco que nasce da experiência de Karol no “Big Brother Brasil”, “Por inteira” é exceção. Ela é uma das três canções de “Urucum” feitas antes do programa. A segunda é “Subida”, composta no fim de 2020, quando não se imaginava o que seria a participação da cantora no programa. Portanto, sua letra soa quase premonitória em versos como “A vida ensina/ Atente aos sinais” ou “Eu vejo muitos/ Se contradizendo/ Enquanto se perdem por likes/ Colecionadores de dislikes”.
A terceira música composta antes do “BBB” é “Louca e Sagaz”, única do disco com produção de WC No Beat. Última faixa do álbum, ela faz uma ponte entre a Karol pré-BBB (presente nos versos desencanados de qualquer trauma, como “Sessão de hipnose com a minha raba”) e a Karol que virá (quando o ódio não for mais um assunto quente para ela). Até porque a essência se mantém: o equilíbrio entre loucura e sagacidade, que o tempo só faz refinar.