Enquanto vários lançamentos do rap masculino celebram a arte de falar sobre nada, vejo um movimento estético e político mais forte nos raps das mulheres.
Está claro, a ordem vigente está OK para os caras, mas as coisas não andam nada bem para as minas. A busca por mudança e igualdade transforma discursos, é aliada da criatividade, é enfrentamento.
Neste contexto, onde muitas mulheres são silenciadas e enquadradas no termo “feminazi” por nós do macho-hop, toda celebração feminina no rap é um manifesto.
O Zona Sem Conforto conversou com Lorena Santos, estilista e dona da grife Lolita Az Avessas; Jéssica Balbino, jornalista, escritora e organizadora do Projeto Margens; Nerie Bento, proprietária da Black Indie Assessoria de Imprensa; Erica Bastos, jornalista e colaboradora dos sites Bocada Forte e Limite Zero; Ya Juste, fotógrafa, MC e compositora do grupo Arrete. Se liga nas ideias das minas.
POR LORENA SANTOS
As mulheres sempre foram silenciadas pelos homens dentro da cultura hip hop, independente do elemento que ela estivesse inserida. Vale lembrar – e isso é um fato histórico – que tudo começou através de uma mulher: Cindy Campbell, o hip hop deve muito a essa mulher. Acredito que a mídia acostumou-se a retratar dentro da cultura o que vê em maior quantidade, ou seja, homens. O que muitas pessoas ainda não perceberam é que existe sim uma gama de mulheres que representam a cultura em todos os seus pilares, por puro talento, profissionalismo, conhecimento e destreza. É importante ressaltar também que existe um fortalecimento dessas mulheres e que os femininos tem sido o elo para essa libertação, tão bem traduzida também pela estética carregada de referências que cada uma carrega, assim como o posicionamento político delas.
POR JÉSSICA BALBINO
Os homens não têm disposição nenhuma pra ouvir as mulheres no hip-hop! Os caras simplesmente ignoram que as mulheres produzem!.
Muitos, em 2016, ainda dizem: não sabia que mina rimava! E isso é muito grave! Esquecem de Dina DI, Rubia, Sharylaine, entre tantas outras…Os caras se fecham!
E quando se propõem a ver ou ouvir, é pra dizer: mas as minas são monotemáticas, só falam de relacionamento, de abuso, de machismo, com tanto tema pra ser falado!
Como aquilo não os afeta, eles acham desnecessário. E tacham como ‘mimimi’, tratando a luta e a arte como menor. No entanto, vejo cada vez mais as mulheres dispostas a fazerem sua arte e pronto. Sem se importar se os homens vão ouvir, gostaram etc. Vejo as mulheres mais preocupadas consigo mesmas e menos com os homens. E as vejo conquistando espaços que historicamente sempre foi dado aos homens.
Um exemplo é a Virada Cultural em SP. Até 2014, o percentual de participação de mulheres do hip hop era risível! Hoje já aumentou. Ou seja, estamos progredindo.
POR NERIE BENTO
As pessoas falam do poder da música, o quanto ela é transformadora e não se preocupam em colocar estas transformações em seus versos. Atualmente, vejo as mulheres sendo mais fiéis ao rap que eu conheci como um dos elementos de construção social dentro do hip hop. Não me entendam mal, a música, o rap são livres. O importante é perceber que as pessoas que estão produzindo ainda não são. Eu admiro os artistas que são uma extensão de sua arte, que falam de suas vivências e que passam conteúdo. Isto tem a ver com conhecimento e consequentemente com leitura.
Esse é o ponto, como assessora de imprensa que atua mais no hip hop eu ouço muita coisa, recebo muito material e confesso ver uma falta de autenticidade e informação nas letras dos homens.
A maioria das músicas é sobre alter ego, o quanto são fodas nisto e aquilo, sobre o quanto os outros não são como eles, isso quando não objetificam as mulheres.
É um rap preguiçoso, mas bem produzido. Comercialmente até podem trazer algum resultado, mas não vejo a cultura hip hop ali, não ela em essência. Em contrapartida, quando ouço rap feminino, eu percebo uma cautela em falar coisas construtivas, de empoderamento, percebo principalmente uma busca em não reproduzir opressões.
E esta iniciativa só acontece quando temos um grupo de mulheres se informado para não errarem, você percebe que elas estão lendo, que não querem compactuar com uma opressão que elas sofreram a vida toda em letras misóginas.
Esses raps, muitas vezes, não vêm com a melhor produção de todas, e nem com a estrutura merecida, existem várias questões para que isto não aconteça, mas são letras legitimas. E fico feliz em ver e ouvir isto. Não se trata de gosto, sabe?
Se trata de reconhecer o conteúdo da letra. Muitos até podem não gostar, sei que não gostam, já ouvi muitas criticas do tipo ‘essas minas só falam de feminismo e essas paradas de mulher’. Quando ouço isto, só consigo pensar. Sobre o que elas deveriam falar? Esta é a vivência delas, a violência, as relações afetivas, as festas, a quebra de padrões, as lutas.
Esses comentários vão contra o ‘ser verdadeiro’que o rap tanto prega. Que, inclusive, os homens pregam. Não estou dizendo que todos os MCs homens mantém esta linha, mas posso contar nos dedos os que de fato nos trazem conteúdo sem diminuir alguém em suas letras. Infelizmente.
POR ERICA BASTOS
Sobre esses clipes, o que vejo é a objetificação da mulher levado ao extremo, obviamente isso não é novidade na música, no samba, por exemplo rolou muito e ainda tem bastante.
Lógico que me incomoda porque é uma visão totalmente masculina, e em todo os aspectos da sociedade sempre é a visão do homem que prevalece, que parece que se torna uma verdade, e este olhar é de menosprezo, de desprezo. A mulher está ali unicamente como figuração, apenas para satisfazer o desejo carnal do homem, numa posição de submissão.
Esse tipo de visão da mulher, no meu ponto de vista, está bem ultrapassado. Esses videoclipes não dialogam com nós mulheres, e hoje a questão de gênero tem se tornado muito forte, os direitos das mulheres precisam ser defendidos, mulheres são assassinadas, mulheres trabalham mais que os homens, mulheres têm dupla jornada, somos julgadas o tempo inteiro, e este tipo visão e de imagem ajuda ainda mais a perpetuar o machismo. Os homens do rap têm que se ligar e sair disso, a evolução não está em ostentação, ou fazer aquilo que todo mundo faz e perpetuar dessa maneira um câncer da nossa sociedade.
POR YA JUSTE
Bom quando fui convidada a falar sobre o espaço da mulher dentro do hip hop, veio na minha memoria várias referencias de tantas lutas que passamos diariamente, porém , uma bem forte me chamou atenção. Vivo na região nordeste, onde o machismo é bem agudo e também – por ser uma região distante do foco das mídias – tudo acaba se tornando mais difícil.
Com o tempo, descobri que não poderia só ser MC para que minha arte fosse mais longe. Dessa forma, fui estudar fotografia , edição de filmagem, desing, produção e tantas coisas para que meu trabalho fosse protagonista e tivesse a sensibilidade que procurava no trabalho do grupo que faco parte, o Arrete.
Há algum tempo venho observando a evolução que as mulheres estão conquistando na cultura hip hop, posso contar que há 12 anos atrás, em Recife, nós mulheres precisávamos nos vestir e cantar como os homens para sermos “aceitas”, nós sempre estivemos no hip hop, mas nos papéis secundários.
Hoje estamos com mais liberdade nos trajes, nas letras. Somos convidadas a participar de eventos como artistas, pois a internet possibilitou a autonomia no rap. Claro que temos muito pra conquistar e nos libertar. Esse caminho ainda está bem no começo. Com luta e união vamos longe pela igualde no tratamento como artista.