Por Jair dos Santos Cortecertu (parceria com CCCa e Bocada Forte)
“Paz entre nós, que se fodam os playboys (Hey boy!)”. Como a tradição africana manda, Mano Brown convoca o público que celebra a linha chamada e resposta, expressão presente no gospel negro, no blues, no jazz e no mais novo fenômeno musical entre os jovens periféricos do Brasil: o rap. Estamos no início dos anos 1990.
O público que lota o baile – realizado em algum canto da zona sul de São Paulo – quer apenas diversão. São adolescentes reunidos num ambiente de iguais. São pretos, pobres e moradores dos extremos da cidade, pessoas que vivenciam uma nova experiência: uma diversão que vem cheia de questionamento, atitude e identidade. Thaíde, DJ Hum, Naldinho e Pepeu são artistas desta festa, deste show que também é informação, uma nova forma de aula. Na comunidade negra, o rap vem continuar os feitos do samba, do soul, do funk. A ideia é semelhante, mas o discurso é radical.
“Sub-raça é a puta que pariu”. O refrão do grupo Câmbio Negro, do DF, é proibido nas rádios de SP, mas – pra desespero dos pais – ninguém pode segurar os DJs e a molecada que compra o vinil do grupo. Eles escolhem Sub-raça como hino. Agora irmãos, vamos conhecer a verdade.
“Navio negreiro / De Angola chegou…”, versos do Consciência Humana, reverberam no Santana Samba, reduto de curtidores de rap, futuros DJs e MCs. Zumbi dos Palmares, Malcolm X, Martin Luther King, os Panteras Negras, a quilombagem. Tudo isso vem mixado e rimado por grupos como FNR, DMN, Comando DMC, Pavilhão 9, entre outros artistas de um mundo negro que não existe para grande parte dos brasileiros, mas, como o Facção Central acaba de registrar em seu primeiro rap, “a nossa cor não é motivo de vergonha. Vergonha é não lutar e se acomodar”.
O canto falado relembra a luta do Movimento Negro Unificado, o rap fala da estratégia de branqueamento e da polícia racista brasileira. Nossa cultura hip hop continua remixando demandas locais e influências norte-americanas. O cinema é outra fonte de ideias inesgotável, filmes como Faça a Coisa Certa, Boyz n The Hood e Perigo Para Sociedade chegam pesado com a onda gangsta e a vida do negro nas ruas repletas de violência e drogas. “Viver ou morrer faz diferença”, frase retirada do filme Perigo Para Sociedade, vira refrão de uma música do Sistema Negro.
Nosso gangsta rap tem influência sonora dos EUA, mas desenvolve uma postura militante e voltada aos problemas sociais. A juventude negra tem voz ativa, e seu volume está aumentando, as ideias fluem com negros como protagonistas. É o nosso rap criticando a sociedade e tentando acordar a massa negra, formada por pessoas que diariamente convivem com situações de exclusão. Do Rio de Janeiro, MV Bill trafica informação, dando continuidade ao que Face Negra diz: “Nós não somos contra os brancos, somos contra o preconceito”.
Para não esquecermos quem somos, temos GOG e suas primeiras rimas. Marcão, do Baseado nas Ruas, manda o lamento e a revolta no cativeiro em faixa produzida por DJ Raffa.
O mundo é dominado por racistas apoiados por não-racistas, aquele povo do “deixa disso…o racismo acaba quando a gente deixa de falar dele”. Infelizmente, muitos dos nossos pensam assim, mas Sharyline, uma das mulheres que enfrentam o preconceito com seu microfone, alerta: “nós blacks sabemos pensar”.
Entre erros e acertos, somos a geração hip hop. Não conhecemos a África por meio de debates acadêmicos e encontros entre militantes. O rap norte-americano deu nosso norte, misturamos tudo e reconstruímos nosso orgulho. Os artistas que nos representam ainda não aparecem muito na TV, não são ricos como os MCs e DJs internacionais, mas são personalidades nas quebradas e nos bailes. Mesmo sem saber, mesmo sem querer, estes artistas formam uma geração, mostram opções, recontam nossa história de maneira envolvente.
A sociedade brasileira ainda não entende o rap. Músicos e especialistas desprezam sua estética baseada na repetição, manipulação de aparelhos de gravação e na fala. Para eles…falta melodia. Pra gente…o rap é um portal para o conhecimento. O que a próxima geração vai falar sobre nós? Não dá pra saber. Hoje somos o futuro…num novo presente negro.
“Mas peraí que eu ainda não morri…”