Alegações racistas, ofensas machistas, ataques homofóbicos, propostas conservadoras para a melhoria da qualidade de vida da população pobre, defesa do poder militar e reivindicação que se instale uma ditadura militar no Brasil. Nada disso nos é estranho, considerando o atual deputado federal Jair Bolsonaro, eleito pelo Partido Progressita (PP) e agora do Partido Social Cristão (PSC) para seu 6º mandato na Câmara dos Deputados do Brasil. Cada vez mais surgem hashtags aclamando o deputado como BolsonaroPresidente, SomosTodosBolsonaros, Bolsonaro2018 ou, até mesmo, BolsoMito bombarem nas redes sociais e nos mais diversos cantos da internet brasileira.
O que pode causar dúvida é: como essa onda conservadora entrou no Rap Nacional, considerando que o Rap nasceu justamente falando contra o racismo e a desigualdade social e, mais recentemente, tem levantando as bandeiras da igualdade de gênero e fim da homofobia e da transfobia?
Em agosto de 2014 o MC Mr. Gangster saúda Jair Bolsonaro, pede para que ele seja presidente e diz: “e os que te odeiam também são meus inimigos.”
O “Rap do Bolsonaro” passou batido em seu lançamento, mas hoje, em tempos de crise política e vivendo no governo “golpista” de Michel Temer, muita gente que acompanha o rap nacional e se identifica com os pensamentos de direita, tem retomado a música para defender seus ideais políticos contra a outra parcela que defende ideais mais ligados à esquerda.
Não podemos ter certeza de como isso aconteceu dentro do Rap, mas podemos especular.
O que vemos, e o que a maioria dos blogueiros de Rap Nacional apontam, é o quanto o Rap tem se desvinculado de suas propostas originais. Surgindo como um grito das vítimas de racismo e do esquecimento do estado nos bairros da periferia de Nova York e, depois, das periferias do mundo, o rap pouco a pouco foi mudando de assunto.
Abandonando o discurso militante a favor de um discurso neoliberal, o Rap foi perdendo sua luta coletiva. Os versos de “Enfrente o Poder” (“Fight the Power” do Public Enemy) e “Isso Aqui é Uma Guerra” (Facção Central), que falavam sobre grupos de pessoas lutando contra as opressões, perderam terreno para versos que falam sobre como determinado MC conseguiu virar o jogo sozinho a partir de seu próprio esforço.
E não só o conteúdo político das músicas mudou, a própria política foi desaparecendo das letras. O Rap Consciente ou Rap Compromisso, como muitos chamam, que era mainstream, foi perdendo espaço para o descolado, para as festas, para a ostentação, para o pagar de foda, o novo mainstream após os anos 2000. E por mais que muita gente tenha voltado a problematizar questões importantes ou tenha ampliado sua voz contra as opressões, como T.I., Jay Z, Kanye West, Luana Hansen, RZO e A’s Trinca, esse esforço ainda não foi o suficiente para superar o mainstream descolado.
Enfim, nós no rap relaxamos. Depois de cantar tanta desgraça e tanta coisa ruim, que é a realidade da periferia até hoje, começamos a falar de coisas boas como uma tentativa de “mudar os ares” ou até mesmo como uma estratégia de mostrar versatilidade e entrar no cenário musical maior das grandes mídias e das rádios. Se um rap politizado jamais seria aceito para ser tocado em uma grande rádio, um rap descolado com certeza consegue alcançar um lugar na lista de mais pedidas. E, afinal de contas, um MC ou um DJ não conseguem comprar comida só com ideologia e boa vontade, eles precisam de dinheiro para sobreviver como qualquer trabalhador.
Ainda assim, a política pouco a pouco foi esquecida. E, aproveitando a deixa, é aí que entra a galera conservadora. Aproveitando um espaço que existia e foi deixado abandonado e formando a consciência política de todos os fãs de rap que sentiram falta de raps que falassem sobre a sua vida, sobre a política do país, sobre a fome, sobre o abandono da periferia e sobre os políticos que roubam dinheiro público e deixam as pessoas pobres na merda.
Mas, ao mesmo tempo em que esses raps conservadores falam sobre coisas que essa galera quer ouvir, e de uma forma contemporânea, eles passam mensagens quase que subliminares que só a galera com mais formação política capta a mensagem inteira. Defende-se que a única saída para a crise é a ditadura militar, o aumento da “segurança pública”, que a culpa do estupro sofrido é sempre da vítima e não do agressor, que os negros e os LGBT não precisam ter “mais direitos” do que o resto da população (mesmo que essas duas militâncias não digam isso) e que o aborto é sempre terrível porque, independentemente da mulher ser dona do próprio corpo, ela não tem o direito perante o Estado de exercer esse domínio sobre si.
E muita gente compra essas ideias mesmo não percebendo que a Ditadura Militar vai afetar a vida artística e a liberdade de expressão através de uma censura cultural, não percebendo que “mais segurança pública” significa mais violência policial contra a população negra da periferia, que já representa 75% de todas as mortes por arma de fogo que acontecem no Brasil, que o estupro acontecem com várias mulheres por todo o país e que muitas mulheres com quem se tem contato estão sujeitas a serem estupradas, que negar direitos específicos aos negros e ao LGBT é uma forma de silenciar e agravar situações que levam à morte dessas pessoas, que muitas mulheres que querem abortar acabam morrendo por maus tratos ou por más condições de higiene em clínicas clandestinas, etc.
Enfim, é isso o que o Rap conservador prega e que mais e mais pessoas consomem. Precisamos ficar mais espertos com essa onda conservadora, precisamos debater mais, precisamos formar melhor nossas opiniões, precisamos aproveitar nossos espaços de fala para protestar coletivamente a favor dos nossos direitos e sempre prestar atenção, por outro lado, para diferenciar quem conscientemente espalha esses discursos de quem comprou esses discursos sem ter muita consciência disso. Precisamos voltar à luta.