Após muito tempo me sentindo o único gay em vários rolês de Rap e já ter ouvido muita coisa (contei brevemente um pouco dessas experiências AQUI no ZonaSuburbana), resolvi virar o jogo e me dedicar a ouvir rappers gays. Não são muitos e nem a maioria, mas são vários. De Rico Dalasam e Gloria Groove a Zebra Katz, Big Freedia, Le1f e Cakes da Killa, tenho ouvido mais e mais rappers e me sentindo muito feliz nessa caminhada de conhecimento e, porque não, também de auto-conhecimento.
O que acontece é que a grande maioria desses rappers (com exceção à Mademoiselle Lulu Mon’Amour) costumam rimam em bases de música eletrônica, especialmente house e derivações, como a darkwave. E, sempre que passo o som de algum gay para um amigo, muitos dizem “poxa, Arthur, a música é até bacana, mas não curto essa pegada eletrônica não, muito mainstream pro meu gosto”. Respeito esses posicionamentos: ninguém é obrigado a gostar da nada. Mas que esses rappers estão bem longe do mainstream, isso é um fato. Por isso esse texto pretende colocar uma nova perspectiva sobre a questão da música eletrônica no rap gay e mostrar exatamente isso: estes são atos revolucionários.
Gays sempre existiram na história e, de uma forma ou de outra, sempre estiveram aí. Apesar de grande parte da história gay ser regada a sangue e muitos terem sido assassinados pelos mais diversos motivos (serem considerados amorais, satanistas, anormais, etc), em alguns momentos tivemos nosso reconhecimento e/ou nossa exaltação como no livro “O Banquete” em que Platão anota falas de Sócrates dizendo que o amor entre dois homens é o amor mais puro que existe.
Mais recentemente os gays, fugindo de toda a punição vinda especialmente de cristãos, passaram a criar lugares onde pudessem se conhecer, se curtir e se relacionar. Um dos lugares mais antigos, mas contemporâneos, são os Bares Gays. Nada além do óbvio: bares onde gays se encontravam para beber e compartilhar experiências. Existem registros de Bares Gays desde o século XVIII, mas a maioria foi fundada especialmente nos séculos XIX e XX.
Com o avanço da tecnologia, a música, que sempre existiu nesses bares, foi chegando de forma mais e mais incisivas nos Bares Gays mas, também, em Saunas Gays e vários outros tipos de estabelecimentos gays, sempre underground, que foram surgindo. E foi dos gays que faziam músicas para outros gays que surgiu a dance music nos anos 1970, de acordo com a recente pesquisa feita por Luis Manuel-Garcia (leia na íntegra AQUI). E, com a música dance, as baladas. (Aqui vale a pena dizer que a foto de capa desta matéria é de Larry Levan, um dos DJs mais reconhecidos da dance music em Nova York, especialmente da década de 1970).
O que acontece, porém é que assim que a música dance (especialmente a house) deu origem à acid-house e, por consequência a outros subgêneros, os heterossexuais que produziam esse tipo de música já protagonizavam o papel de DJs da eletrônica e a origem gay desse gênero se perdeu na memória, até ser recuperada nessa pesquisa.
De qualquer forma, até hoje as baladas LGBT reúnem todos aqueles que, de uma certa forma, se sentem excluídos, diferentes, esquisitos e isolados por conta da sua orientação sexual ou identidade de gênero trans. Nem o Rap, em alguns momentos, é o ambiente mais acolhedor para nós LGBT. Vivendo no país que mais mata travestis no mundo todo, onde a religião mais adotada pelos brasileiros costuma pregar contra a nossa experiência, onde não existem leis que reconheçam o casamento entre pessoas do mesmo gênero, onde transsexuais em muitos ambientes ainda não podem ser chamados (as) pelo nome social e no país que ainda não criminalizou a homofobia e a transfobia, é bom ter um lugar onde se pode deixar os problemas do lado de fora e viver, mesmo que apenas ali dentro, uma vida normal.
Nem tudo são flores: muitos estabelecimentos gays já foram invadidos, destruídos e queimados com ou sem pessoas dentro deles. O último caso registrado foi o de Orlando onde um atirador invadiu uma festa gay e matou quase 100 pessoas. Ainda assim, por mais que o objetivo seja se divertir lá dentro, frequentar esses lugares é um ato de resistência, é mostrar que nós LGBT existimos e resistimos e não aceitamos nos submeter totalmente a uma sociedade que não nos aceita plenamente. É inegável que muitos direitos tem sido conquistados aos poucos, mas a caminhada ainda é longa.
Tudo isso para dizer que a música eletrônica e essa vivência de vida noturna e baladas não é simplesmente algo que fazemos por diversão (ainda que esse seja o objetivo): é resistência, é a nossa história. E se os heterossexuais pegaram a nossa música e não nos deram o crédito, isso não diminui ainda assim o nosso papel nessa criação.
Dessa forma, rappers gays que, de uma forma ou de outra, quase sempre usam batidas eletrônicas estão simplesmente contando nossa história e resistência através do ritmo.
Enfim, finalizo com um salve para todos os gays, todas as lésbicas, bissexuais, trans, dragqueens, dragkings e travestis nesse mundo. Nós ahazamos!